finalmente... a nossa pinta em texto. Numa colaboração do caro R.
As belas e o monstro
Estava uma daquelas tardes que só o Porto conhece. Ao mesmo tempo soturna e sublime, às vezes chuvosa, outras de uma luz desconhecida no Sul. Não foi fácil estacionar. Uma inesperada agitação urbana, pouco frequente ao Sábado, entupiu grande parte das vias que dão acesso a esse centro nevrálgico que é o Progresso. A passada rápida que levava, depois de ter deixado o carro no parque de estacionamento da Praça Carlos Alberto, não me deixou prestar a devida atenção à mercearia Fast-Food, um antro mágico de cores, aromas e especiarias que a ânsia de futuro insiste em destruir.
Era dia de encontro de meninas e eu estava convidado. Excepção justificada pela minha presença no Porto, o que nem sempre acontece. Senti à entrada, ainda no piso térreo, a alegria de chegar a casa. Não é meu, o café, nunca foi, nele não passei intensos momentos de adolescência ou universitários, nem cumplicidades amorosas e afins. Mas sendo da Joana, tornou-se também meu.
Subi as escadas a medo. Afinal, não é todos os dias que se assiste ao mítico encontro das meninas. Estavam, todas, lindíssimas. A Sónia, ao meu lado, de branco, a Mines, a seguir, de verde-escuro, a Inês, à minha frente, de azul e branco, a Joana, à minha esquerda, de roxo, e a Ana, de preto.
Quando me sentei a conversa já ia a meio. Para evitar a timidez do impacto inicial, procurei o Brasil, que agora ali trabalha. Pedi um café e uma água, para acompanhar a metade do crepe que, daí a minutos, haveria de comer.
Os temas, naquela altura, eram concretos. Mais tarde disseram-me que a discussão tinha começado com os problemas do país e a impossibilidade de concretizar o Estado Providência, com a cada vez maior confusão entre o que defende a esquerda e o que caracteriza a direita. Houve, também, segundo alguns relatos, uma minuciosa, e também corrosiva, análise do falhanço militar anglo-americano no Iraque. O mundo de outrora, diziam, escapava-se como areia entre as mãos, metáfora que, dadas as condições metrológicas do dia, não escondia um desejo de fuga, roupa a menos e uma boa dose de água e sol.
Mas o tema, naquele momento, era sogros e sogras. A metafísica dos costumes contemporâneos, a par da inevitabilidade do meio estar cada vez mais a deturpar a mensagem, ficariam para depois. Agora era preciso, em jeito de catarse, tentar compreender como funciona aquele cérebro sogrático (não confundir com pensamento socrático). Aquela ligação tão estreita e confusa entre mãe e filho que teima em se impor no meio das relações. Aquela atitude sempre obtusa e inconsciente de reproduzir gestos mimetizados na infância. Enfim, um emaranhado de situações e equívocos que complicam a já de si complexa teia familiar.
As meninas deixaram-me à vontade. A minha presença não condicionou o debate, nem o entusiasmo das intervenções. A exuberância da Ana, a ponderação da Sónia, a distracção da Joana, a incisão da Mines e a diversão da Inês. A certa altura, quando acreditei que podia verdadeiramente contribuir para a conversa, senti uma voz dentro de mim a dizer: «Contenta-te em ser espectador, oportunidades como esta não se repetem». E assim fiquei, elas a falar, eu a ouvir. E o mundo à nossa volta – cheio de computadores portáteis, trabalhos de grupo com prazos apertados, cigarros e cafés, bebidas naturais e adicionadas, sonhos e tristezas – a desvanecer-se com a penumbra do fim de tarde.
texto por rd