quinta-feira, janeiro 26, 2006

nada como ler uma novela de Beckett para curar neuras

“Não conseguia dizer se era sempre o mesmo tipo ou se havia vários. As risadinhas são todas parecidas, e os gemidos também. Tinha um horror tal, nessa altura, a estas irrisórias perplexidades, que caía sempre na mesma armadilha, a de procurar dissipá-las. Levei muito tempo, por assim dizer, toda a vida, para perceber que a cor de um olho visto de relance, ou a proveniência de um ruído longínquo, estão mais perto da Giuedecca no inferno das ignorâncias do que a existência de Deus, ou a génese do protoplasma, ou a existência de si, e são ainda menos dignas de ocupar os sábios. É um bocadinho de mais, uma vida inteira, para chegar a esta consoladora conclusão, já não sobra tempo nenhum para a aproveitar. Foi portanto uma grande ajuda quando, ao interrogá-la, ela me disse que se tratava de clientes que recebia rotativamente. Poderia naturalmente ter-me levantado e espreitado pelo buraco da fechadura. Mas o que é que se consegue ver, pergunto-vos, por esses buracos? Portanto, vive da prostituição?, disse eu. Vivemos da prostituição, disse ela. Não podia pedir-lhes para fazerem menos barulho?, disse eu, como se acreditasse nela. Acrescentei. Ou um barulho diferente. Eles têm de ganir, disse ela. Vou ter de me ir embora, disse eu.”


- retirado do Primeiro Amor de Samuel Beckett, Colecção de Literatura Universal da Ambar

1 comentário:

.j. disse...

ja li esse. beckett devia ser um fixolas para beber uns copitos na ribeira ;)